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Não sabia que tinha um rio aqui

O passeio começa no metrô Anhangabaú, com os pés molhados, sinto como se andasse sobre rios. Na verdade, andamos sobre rios que nem imaginamos que existam, mas eles estão lá há muito tempo, muito antes de nós. Porém meus pés estão molhados por causa das águas de março, aquela chuva forte de verão.

Ao lado da saída do metrô, tem uma escada que leva à Ladeira e à Fonte da Memória, aquela que hoje está seca — a não ser pelas chuvas, cheia de escadas e um obelisco, chamado de Piques, a sua frente (aliás, esse obelisco é a obra mais antiga de São Paulo, mais de 200 anos). Hoje, o nome da fonte quase não faz sentido. Que memória é essa? A memória é ao rio Anhangabaú, o qual cavou toda aquela ladeira. O som da cidade é alto, grita em nossos ouvidos, assim, o som doce dos rios fica impossível de ser ouvido. Ao final dessa ladeira, pode-se colocar os pés à beira das águas do Anhangabaú, bem... se ele estivesse lá. Já que não podemos andar com os pés dentro de suas águas, devemos "vê-lo" de cima. Há uma passarela ao lado direito da ladeira, oposto a outra saída do metrô, que leva à R. do Ouvidor, uma bela vista.

Por incrível que pareça não são só as águas do Anhangabaú que estão cobertas. Olhando para o lado direito dessa passarela, correndo aos pés de toneladas de concreto, vaga o discreto Rio Saracura. Sobre o qual está a 9 de Julho, antes ocupada por pássaros que originaram o nome do rio, assim como comunidades de negros fugidos.

Se não fossem os prédios e o asfalto... sem dúvida veríamos águas correndo para todos os lados. Mais à frente da passarela, quase chegando ao terminal Bandeira, é possível ver a Câmara Municipal de São Paulo, um prédio de vidros escuros que escondem o que lá acontece, não muito alto, cerca de 13 andares. Este prédio ignorou completamente a natureza, não pensou duas vezes e se colocou em cima de outro curso de água, o rio Bexiga. Cômico e triste, imaginar que é naquele prédio que se fazem leis e que à sua volta não haja um verde, um rio aberto, uma natureza; prioridades...

Coitado, esse sofreu antes mesmo da chegada da Câmara em 1560. Antes dela, na rua próxima, na R. Santo Antônio, eram realizados abates de todo tipo de carnes para alimentar os paulistanos, porém, toda a carcaça era jogada sem escrúpulos no Rio Bexiga, que desaguava sujo e fedido no Saracura. Imaginei se era possível enxergar o Bexiga no subsolo da Câmara (dica do projeto Cidade Azul). Depois de me jogarem de um lado para o outro naquele prédio, pois não entendiam que eu queria ver o "rio que corre embaixo desse edifício", cheguei ao '-3'. Só carros! Foi quando conversando com um bombeiro do lugar, na frente dos elevadores, um outro homem há mais tempo no local disse, se escorando na parede do elevador, que esse rio já estava 'tampado', desde lá na garagem até a Santo Amaro. "Não dá mais para ver, não depois da obra aqui na garagem". Obra essa que ocorreu em 2014 e custou 15 milhões de reais. Mais dinheiro gasto para esconder o que São Paulo tem de belo. Na saída, a moça que me atendeu quando cheguei encharcado perguntou: "viu o rio?", quando disse que ele havia sido coberto ano retrasado, ela respondeu com um certo desanimo e curiosidade no olhar: "que pena."

Ainda no mesmo caminho de "vista aérea", contornando o terminal Bandeira, andando sob a 23 de Maio, anda-se sob o Rio Itororó. Da passarela é possível ver um antigo casarão reformado, onde está o Red Bull Station, um espaço aberto à cultura, ou, como está no site deles: "um espaço que inspira, conecta e transforma pessoas, abastecendo a cidade com energia criativa". A Red Bull começou a usar a casa depois da reforma, em 2013. Essa fica bem no encontro do Itororó com o Anhangabaú, o que implica "muita água" e isso causava enchentes dentro do porão. Um dos artistas que estava lá na época, o uruguaio Pedro Cappeletti fez uma instalação com tubos plásticos esticados no porão de modo a indicarem onde passa cada água ali embaixo. No encontro delas ele instalou uma sonora que reproduzia o som gravado no dia em que ele e quem estava no casarão tiveram que secar toda a água. Os tubos foram colocados na altura que a água atingiu naquele dia, mais de 1m70.

Pois é, de nossos olhos, estão escondidos cerca de 300 rios. 300 paisagens maravilhosas, refrescantes, soluções para enchentes. E nós nem sabemos. É por isso, que algumas ONGs, como a Cidade Azul, têm projetos de conscientização para que estes rios saiam do anonimato e, quem sabe em algum futuro, voltem a correr diante de nós.

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